Pelo jeito, parece que toda liderança que se faz sobre um discurso de "luta contra a corrupção" não passa de um embuste. Foi assim com Collor, é assim com Bolsonaro. O "Mito" foi eleito sem ter nada a oferecer: nenhuma formação intelectual excepcional, nenhuma carreira brilhante nem como militar nem como político, nenhuma "história de sucesso", nenhum conhecimento aprofundado em nada. A única coisa que ele tinha a oferecer é:
- Um moralismo repetitivo e superficial que apela ao dogma mais do que à razão, e usa o conceito de "família" pra gerar um apelo afetivo tão plástico quanto;
- Um senso de cruzada ideológica que fede a naftalina;
- Puritanismo artificial, recheado frases de efeito apelando ao atraso cultural e aos baluartes do fanatismo religioso, a quem Bolsonaro fez largas concessões em troca de apoio;
- Memes de internet que geram euforia num senso comum carente e infantiloide que acredita em super herói (Moro);
- MUITAS mentiras para criar inimigos comuns (movimentos sociais, população LGBT, esquerda e professores) e inflamar o senso comum reacionário contra "subversões", tais como a fábula do "kit gay", antes da campanha, e o boato das mamadeiras de glande durante ela;
- Venda de ilusões de empoderamento para uma geração que não aceita que o mundo lhes dê limites - vide o lobby incessante pelo armamento da população, que se levado a cabo pode causar um caos social irreversível;
Sim, com todos os problemas da vida real se abatendo sobre a vida dos cidadãos, o Brasil elege como presidente um meme de internet.
Na Argentina, a população, há muito mergulhada em uma crise econômica, também elegeu um arquétipo de "paladino da justiça", ainda que muito menos enfático e instável que o daqui, que nas primeiras oportunidades que teve, lançou mão do poder para favorecer seus grupos em detrimento do bem estar das classes trabalhadoras.
A diferença é que, ao perceberem-se o atacados pelo engodo que puseram lá, os argentinos reagiram, se organizaram, fizeram greve geral. Não se trata de um determinismo cultural que sugira que isto se passa porque "O Brasil é assim e a Argentina é assado". A luta também está na cultura e na história do povo brasileiro. E em vários momentos, fizemos acontecer.
A geração que ergueu e derrubou, por exemplo, Collor de Mello também se inflamou na campanha, também foi na onda, e também endossou uma fraude, mas quando confrontada com a trapaça e a situação espúria à qual estava agora submetida, resistiu à sua maneira, e venceu.
A qualquer pessoa sensata já está bem evidente o tamanho do enrosco no qual o Brasil se meteu, mas diferente de 1992, nos parece que os apoiadores do "Capitão", quando a realidade os confronta, preferem fechar os olhos, tampar os ouvidos e gritar "lalalá". Dói a qualquer um admitir que se está errado, ainda mais depois de ter-se entregado ao apoio frenético e incondicional a uma pessoa como aconteceu, depois de ter espumado, xingado, brigado na família e desfeito amizades por causa do "Mito". Parece que antes mesmo da eleição, ele já estava afetar suas vidas negativamente. Renunciou-se a vínculos afetivos, abalaram-se relacionamentos. Tudo tão doloroso de certa forma, mas com uma recompensa, o sentimento de vitória e vingança sobre aqueles que não embarcaram em sua onda pela "mudança". Houve foguetório, provocações, palavras de ordem, hashtags, como uma final de Copa do Mundo ou um gigantesco entrudo fora de época.
Mas agora a festa acabou, a ressaca veio, e a realidade se impôs como sempre faz, mas os agressivos entusiastas do novo presidente não deram a si a chance de voltar atrás, agora estão presos na fantasia, e a capacidade de tolerância à frustração é baixa demais pra suportar a dor que vai causar uma simples encarada aos fatos. Vemos cada vez mais silêncio, as energias gastas na euforia não sobraram pra se indignar com a rasteira que lhes foi dada, essa mesma realidade, quando vem inteira de uma só vez, congela, paralisa. Rever posições, se reinventar é muito difícil. No mundo de hoje, já não se pede desculpas.
Há ainda aqueles para quem a realidade pouco importa, estes continuam gritando e soltando espuma. A cada trespasse e crítica ao seu "Mito", vociferam palavrões e insultos, que lhes dão a ilusão de vencer o debate, embora o silêncio da contraparte seja muito mais pela simples indisposição em engajar-se na baixaria. Esses são indivíduos que mudaram de círculo, de ideias e personalidade na defesa de uma pessoa, e por ele arrefeceram suas convicções e seus valores pessoais. Aqueles que antes tinham "tolerância zero" à corrupção agora se contentam com as migalhas dos próprios ideais, a dizer muito vagamente que "tudo bem, o PT roubou mais". Embora os dias de governo do Partido dos Trabalhadores estejam cada vez mais distantes (se passaram quase 3 anos), e a orientação política do governo brasileiro tenha sido radicalmente alterada pelo subsequente governo de Michel Temer (do qual Bolsonaro busca em grande parte uma continuidade), tudo ainda se justifica através da evocação do nome do PT e de Lula (embora, como os mesmos adoram repetir, ele já esteja há quase um ano preso). O silogismo em suas mentes impera indestrutível, é coisa de Cruzada, todos aqueles que não estão ao lado do "Mito" são "Petistas", e Petistas são inimigos naturais.
O que vemos, na maioria das vezes, é que esta é uma sociedade com dor, que se enganou, e que luta pra entender e reconhecer os próprios erros. Foi uma eleição muito agressiva, mais do que qualquer outra que eu, nesses 28 anos de vida, já tenha visto. Uma campanha em clima de antagonismo bélico, na qual nada se poupou para atingir o inimigo. Agora, ao desmoronar dos ídolos, muita gente não lembra nem quem era antes, e vai depender de muito trabalho e reflexão pra que possa se reencontrar, outros vão continuar raivosos, na defesa de um ícone que muito pouco apreço demonstrou por eles.
Vai ser árduo, mas frente a tudo o que está a e para acontecer, afetando a vida de todos diretamente, vamos ver quanto murro aguenta a ponta dessa faca...